A tropa da opinião

Daniel Consani
Ainda que tentasse se livrar daquele pensamento horrendo, Marcos não conseguia deixar de considerar que sua esposa talvez estivesse gostando, mesmo que de modo mórbido ou bizarro, de ser estuprada por dois assaltantes dentro da loja de conveniência do único posto de gasolina da cidade. Lembrou-se que ela havia mencionado, mais de dois anos atrás, quando conversavam deitados em um quarto de motel, que tinha vontade de transar com dois homens; o riso que seguiu a afirmação (“Estou brincando”) não serviu para que ele a esquecesse.
E enquanto via os braços retesados de Priscila segurando os pés do refrigerador que estampava o slogan “Viva o que é bom” bem abaixo das letras inconfundíveis da Coca-Cola com as pernas flexionadas e o menor dos assaltantes com o rosto enfiado em seu pescoço soltando suspiros ruidosos, Marcos sentiu uma lágrima escorrer em seu rosto vermelho. Olhou para baixo e viu a gotícula se transformar em uma pequena mancha escura em seu sapato de camurça. Tinhas as mãos amarradas atrás de si. Pensou em se atirar em direção aos dois assaltantes. Poderia desferir alguns chutes, mas de certo acabaria com uma bala calibre .22 enfiada em seu crânio. Tentava desviar o olhar daquela cena grotesca, mas era o som que sua esposa emitia que o dissimulava ainda mais. Viu um jornal exposto próximo ao caixa da loja de conveniência. “Renan absolvido”, gritava a publicação.
Foi quando resolveu sair correndo para fora daquele lugar, em direção a rodovia, e se deixou atropelar por um trucado carregado de peças de carne bovina.
Estava sonhando apenas. Mas ainda não acordou.
Daniel Consani
Pensar em como, muitas vezes, levamos a vida sem atentar para as riquezas escondidas no nosso cotidiano é algo que me intriga muito. O gosto pela rotina é o apreço pela acomodação, penso eu. Afinal, há algo tão preguiçoso quanto criar rótulos e ritos? Pensemos: quão vazio e inútil é falar que alguém tem “personalidade forte”? Quão patético é autodenominar-se uma pessoa “autêntica” e “espontânea”, que “não leva desaforo para casa”? Quão castradoras são expressões como “indie”, “patricinha” ou “noveleiro”?
O fato é que adoramos classificar. Num mundo que valoriza métodos e formas em detrimento de fins e conteúdo (e isso não é, necessariamente, uma crítica), é bastante natural que busquemos ordenar coisas e pessoas dentro de certas nomenclaturas. Isso leva, é claro, a “personização” de coisas (você já atribuiu um nome carinhoso a um carro, a uma guitarra ou a qualquer outro objeto?), bem como a “coisificação” de pessoas (punks, hippies, emos etc).
Brilhantemente antecipado por Aldous Huxley e, em parte, aprofundado por Orwell, esse conceito acaba por desempenhar um papel de extrema importância no mundo atual. Para se ter idéia, chegamos a sentir certo incômodo quando não conseguimos achar termos para classificar algo ou alguém. “Já leu Jorge Luis Borges?” – “Não. Em que tipo de literatura ele se enquadra?” – “É algo de cientificismo, horror, realismo, literatura fantástica... sei lá.”.
Sairia algo assim, acho.
Nessa esteira, é absolutamente difícil não se sentir incomodado com as limitações que esses rótulos trazem para o desenvolvimento intelectual das pessoas. No âmbito da política, por exemplo, é lamentável que tenhamos debates acerca de termos insuficientes para representar a real complexidade do tema. “Direita”, “esquerda”, “liberais” e “conservadores” acabam por representar conceitos tão idiotas quanto “rock”, “pop”, “cult” ou “erudito” para a música. Quem ousaria encaixar o PT, o PDT, Gordon Brown e Hillary Clinton em um dos termos políticos acima? Como negar que a indústria cultural fez com que a sexta de Beethoven virasse pop? Já ouviu dizer que o rock adolescente de “A hard day’s night” dos Beatles virou cult?
A miscelânea parece ficar cada vez maior e não menos interessante. Afinal, adoro pensar que Shakespeare fazia teatro para o populacho e hoje é visto como um deus da literatura britânica.
Coisas.
Na de quinta-feira passada fiquei entre 21h00 e 00h00. Se eu te contar que nada foi decidido, você acredita? Nada de nada.
Um edifício de classe média alta. Um universo de mais de duzentos e cinqüenta apartamentos, com uns trinta - se muito - ali representados. Entre os delegados, uma maioria de gente mal educada, mal amada, maldosa. Gente que escuta quando quer, entende o que quer e se dá o direito de aumentar o tom de voz na hora que quiser. Palestrantes trocando os pés pelas mãos e uma platéia disposta a atirar pedras à primeira vírgula fora de lugar.
Temos o tiozinho bonachão vestido de branco até os cabelos que volta e meia interrompe a reunião para pedir que ela seja mais rápida; temos a senhora cheia de dentes que até fala coisa com coisa mas não diz coisa nenhuma; temos a dos quarenta mais humilde, que concorda com o que qualquer um afirmar ou refutar; temos o jovem pancada que sempre causa tumulto quando lança uma péssima naquele momento em que sobra apenas o Chaves falando do Professor Linguíça. E temos eu, achando que em algum momento descobriria por que meu interfone estava quebrado há mais de um mês.
Histórias mal contadas, troca de gentilezas generalizada; um tal de passar vergonha alheia a cada instante. Três horas disso para rasgarem a pauta e chegarem à conclusão de que uma nova assembléia deveria ser feita.
Nessa eu me incluo fora. Até porque, no dia seguinte, fiquei sabendo que o interfone havia sido consertado. Acho que fui recompensado.