Ponto Jor

quarta-feira, outubro 10, 2007

Elio Gaspari

Daniel Boa Nova

Na falta de tempo e disposição para um texto autoral de qualidade, copio aqui um artigo de um dos melhores jornalistas do país, Elio Gaspari. Vi no UOL - imagino que tenha sido publicado na Folha de hoje.

É sobre a polêmica Luciano Huck/Rolex/Ferréz e também sobre o aniversário de morte de Che Guevara.

Muitas questões levantadas, sempre de um modo pertinente. Boa leitura!

O socialismo precisa de um Rolex

ELIO GASPARI

O cidadão terminou suas pesquisas na biblioteca de Londres e vai para casa, no Soho (rua Dean, 23). Passa um sujeito, mostra-lhe uma faca e pede o relógio. Ao narrar o caso à sua mulher, ele diz: "Estou com 41 anos e a expectativa de vida neste inferno capitalista é de 40. A nossa dieta ultrapassa as 2.300 calorias que o proletariado consome. As condições de higiene e saúde desta cidade são infernais. Aos jovens restam poucas alternativas fora da sífilis e das prisões australianas. São as contradições do capitalismo e, por causa delas, fui assaltado por um garoto". Pode ser que Karl Marx tenha dito diferente:"Jenny, um lúmpen roubou meu relógio".

Pobre Luciano Huck. Foi assaltado por dois sujeitos que, de revólver na mão, tomaram-lhe o Rolex. Reclamou num artigo publicado na Folha do dia 1º e teria feito melhor negócio se saísse por aí, cumprindo "missões" em cima de motoqueiros. Foi acusado de ganhar muito e, portanto, ser fonte da violência. Mais: quem manda "pendurar o equivalente a várias casas populares no pulso"? Disse que "isso não está certo" e perguntaram-lhe o que devem dizer as pessoas que vivem de salário mínimo. Fechando o ciclo, num artigo marginal-chique, o rapper Ferréz respondeu com o olhar dos assaltantes e os óculos de Madre Teresa de Calcutá: "Não vejo motivo para reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo para ambas as partes".

Está mais ou menos entendido que o partido democrata perdeu a confiança dos americanos nos anos 80 porque deixou-se confundir com os defensores de bandidos. Cada um pode achar o que quiser (desde que não tome o relógio alheio), mas nesse caminho a discussão da segurança pública brasileira caminha para a formação de duas tropas, ambas julgando-se elite do seja lá o que for. Grita-se, para que tudo continue como está. O filme ensina: o traficante foucaultiano da PUC não foi para a cadeia e o PM larápio e covarde voltou para a tropa.

Por ser um profissional bem-sucedido e ter ganho um Rolex de presente da mulher (a apresentadora Angélica, igualmente bem-sucedida), Huck foi transformado num obelisco da desigualdade social brasileira.

Infelizmente, assaltos não melhoram o índice de Gini. No caso do Rolex do apresentador, especular o destino do dinheiro de sua venda é um exercício carnavalesco. Pode-se sonhar que tenha ido para uma família carente, mas é mais provável que tenha servido para fechar um trato de droga. Que tal as duas coisas, meio a meio? Uma coisa é certa, o Rolex voltará ao pulso de alguém disposto a pagar por ele.

Quis o Padre Eterno que esse debate indigente acontecesse logo na semana do 40º aniversário da execução de Ernesto Che Guevara, o Guerrilheiro Heróico. Se Angélica dissesse que deu o Rolex a Huck como parte dessas celebrações, a discussão ganharia um denso conteúdo ideológico.

Quando o Che foi assassinado, no mato boliviano, tinha dois Rolex. Um, modelo GMT Master, era dele. O outro, marcado com um X, era uma lembrança que tirara do pulso de um combatente agonizante. (O índice de com-Rolex dos guerrilheiros cubanos na Bolívia era de 12%, certamente um dos mais altos do mundo.)

Os relógios eram dois, mas há três por aí. Quem quiser pesquisar a herança de Guevara, pode começar investigando esse mistério.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Belo texto e um comentário a parte - Mas a mídia é mto freak mesmo né? Ontem mesmo brinquei com o Consani "Esqueçam Madelaine, resgatem o relógio do Huck!".

11:04  
Blogger João Prado said...

Na real, seria mais correto mandar um email para o próprio Gaspari, sendo que é dele o texto... mas sobra preguiça e não quero dar mais laranja pro homem.

Sobre ele, grande (jornalista)... tirando a amizade e intimidade com o ACM

13:58  

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