Ponto Jor

terça-feira, outubro 02, 2007

Uma crônica quase perdida no tempo

Luís Pereira
Definitivamente não conseguimos imaginar quantas e quantas coisas fantásticas são produzidas ao longo do tempo sem que passem por nossas mãos. São verdadeiras obras primas que surgem e se vão sem que pudéssemos ter o deleite de apreciá-las.

Muito do meu gosto pela literatura vem do meu pai, que sempre foi um amante da arte de compor escritos, das prosas e dos versos. Poucos sabem, mas meu pai também é um grande escritor, embora acredito que nem ele ainda tenha, de fato, descoberto isso. O curso da vida - e o indispensável dinheiro - o fez desistir de sua formação (jornalista) para seguir uma trajetória empresarial. Todavia, eu acredito e tenho fé que, assim que ele conseguir a tão sonhada aposentadoria, sua carreira literária há de progredir.

Sei que meu pai já escreveu muita coisa boa que ele nunca publicou, mas não é um texto perdido dele que pretendo ressuscitar hoje aqui no PontoJor, e, sim, uma crônica do Rubem Braga que ele me apresentou.

Depois que montei o coletivo PontoJor com meus amigos, meu pai insistiu muito para eu ler Rubem Braga. Eu já sabia da existência desse notável cronista, mas confesso que ainda não conhecia sua obra. Papai tratou de me presentear com livros do autor e, quando falávamos sobre o assunto, assim ele dizia: “meu filho, leia Rubem Braga, veja a técnica dele de escrever crônicas, eu quero que você pegue a técnica”. (risos)

Eu gostava muito dessa influência e achava muito engraçado o jeito dele falar. Tratei de dissecar os livros que acabara de ganhar e, assim como meu velho, virei um grande fã do Rubem. Mas, entre a sua obra, havia uma crônica em especial que papai sempre comentava e que era impossível de achar em seus livros: Um homem feito de pau.

Meu pai falava que tinha essa crônica em um recorte de jornal guardada em algum lugar da casa. O problema é que ele sempre teve a mania de guardar um monte de coisa. Só para vocês terem uma idéia, ele tem os jornais dos dias em que eu e meus irmãos nascemos. Seria uma tarefa um tanto complicada encontrar esse pedacinho de jornal em meio a tanta parafernalha. Resolvemos apelar para o oráculo pós-moderno, mais conhecido como Google. Procuramos, procuramos e nada! Nem essa quase-divindade da consulta tinha o que procurávamos.

Bom, acabamos, por ora, desistindo. Passado um tempo, papai me chamou, tirou uma caixa velha do armário e, dentro dessa caixa, um recorte de jornal de mais ou menos 20X10 já amarelado, mas ainda em bom estado. Eu, instintivamente, já sabia do que se tratava. E era mesmo a crônica do Rubem Braga, que ele tinha achado num final de semana em que ficou em casa sem muito o que fazer.

E com uma entonação toda interpretativa, papai leu pela primeira vez Um homem feito de pau para mim. Fato que já se repetiu algumas vezes depois desse episódio. A crônica é fantástica! De uma sensibilidade incrível e comovente. É extraordinário como Rubem Braga consegue externar seus sentimentos com tanta criatividade, delicadeza e verossímil propriedade.

Agora tenho o grande prazer de compartilhar essa admirável crônica com vocês e, presunçosamente, ressuscitá-la por meio da esfera digital.


Um homem feito de pau

Rubem Braga

Deu um vento áspero, cheio de poeira e folhas secas; mas depois já de tardinha, a rosa dos ventos girou, e então veio do sul um ar frio e úmido, que fez bem ao nosso focinho; desceu uma chuva mansa.

Mas nesse dia aconteceu muita coisa; e para não pensar, e para não sentir, andei longamente pela rua sob a chuva fina. Eu me sentia como feito de pau; um homem mecânico andando, lentamente andando, andando como qualquer homem andando em qualquer rua. Um homem maciço, sem nenhum espaço dentro dele para coração, memória, nem desespero: todo de pau.

Um homem de pau, de cara de pau, boca de pau, olhos de pau. Podem rir dele, serrá-lo em tábuas, parti-lo em achas de lenha, pintá-lo, queimá-lo, fazer dele mesa, cabide, canoa. Podem fazer dele tudo, menos fazê-lo sofrer.

Ele anda nas ruas neutras, dobra a indiferente esquina, ele caminha sem pressa. Sabe que em alguma parte há um relógio batendo os segundos, inexorável.

Sabe que vai acontecer alguma coisa desesperadamente triste, que ele não pode evitar. Por isso, para não sofrer, ele se fez de pau. Sabe o que vai acontecer; sabe mas não pensa nisso, não sente.

Apenas vagamente, muito vagamente, como um pedaço de pau, com a seiva seca, mas que ainda tivesse uma distante consciência de árvore – muito vagamente sente que a chuva fina lhe faz bem, um inútil bem físico, a umidade. Água. Mas seus olhos estão secos e, por dentro, ele está seco, bruto, morto. Andando na rua, andando.

2 Comments:

Blogger João Prado said...

Bacana o resgate dessa crônica, black face

16:08  
Blogger Daniel Consani said...

Que beleza de crônica...
Ótima pedida, Luizera.

16:38  

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