Ponto Jor

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Sobre chuva, trânsito e um pouco de lucidez

João Prado


Em um dia só choveu mais do que era previsto para o mês inteiro, constatou o metereólogo no rádio. Em janeiro, São Paulo ferve com o calor e não existe mesmo escapatória. A chuva desaba, imunda, suja, limpa... A chuva também revela. A cidade que nunca pára, tem que parar. O trânsito, que fluía lentamente como de costume, parou. Fuja! Vire à próxima direita, saia da Marginal, caia na Berrine, faça o contorno e tente a Espraiada... “... hoje choveu na espraiada...”, canta Negra Li. Esqueça. Não há saída. Se a média de trânsito já é de 83 km, o que são 123 de congestionamento?

No banco de passageiro do carro, em meio a algumas folhas de anotações, uma caixa de bombons, cortesia de uma operadora de celular. Abre e come um, dois, três... Estão quase derretidos. Os vidros estão embaçados e o calor continua. Pensa em uma cerveja, geladíssima. Pensa em uma ducha de água fria, em ler um bom livro, sem grandes pretensões, vencendo naturalmente as páginas e as horas. Mas se dá conta de que não sentirá tão cedo uma cerveja em queda livre na sua garganta e que “Dia de paz”, de Henry Miller, só depois que a CET liberar. Há o carro e ele dentro. Percebe que não existe nem a possibilidade de estacionar o automóvel. Sem espaço para uma manobra.

Uma hora e trinta minutos depois, o mesmo lugar. O mesmo lugar! O celular está com a bateria fraca. Ele o liga, mas o aparelho insiste e desliga. Abre a janela e as gotas da chuva, que já ameniza, molham aos poucos o interior do veículo. Não se importa mais. Acaba percebendo que não é má idéia sentir alguns pingos cair na testa, ensebada de suor. Em um raro momento de lucidez perante aquele caos, abre a porta e, pela primeira vez, abandona o seu veículo. Abandona porque não se importa em deixá-lo ali, com a chave no contato, e dar alguns passos sobre o asfalto molhado. Na verdade, se esqueceu de como chegou até aquela avenida sem saída e para onde mesmo a sua “caranga”, como dizem os que por aqui moram, iria levá-lo.

Olhou para uma mulher que estava há alguns carros na frente – ela já o estava fitando há algum tempo. A moça decidiu também sair do seu veículo e caminhou lentamente até ele. Não haveria possibilidade de se conhecerem depois, eram algumas palavras ali ou nada. Ambos com profissões que não dão margem a demonstrações de afeto. Ela é representante de uma multinacional americana estabelecida no México, hotéis e projeções no PowerPoint são algumas das coisas comuns na sua vida. Ele é jornalista. A chuva pára. Outros motoristas também saem de seus automóveis. Não querem abandonar as suas propriedades. A avenida alagada é o motivo.

Com meio metro de distância, entre ela e ele, a iniciativa é dela:

- Quando chove essa cidade enlouquece a gente. Mas existem coisas que enlouquecem mais aqui.
Ele não responde, apenas sorri. Ao certo esquecerá aquele encontro, daqui uma semana ou menos, mas aqueles poucos minutos foram vividos na plenitude.