Ponto Jor

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Dois cânceres: patriotismo e macartismo

Daniel Consani

Comigo, acontece uma ou duas vezes no ano. De um filme me arrebatar.

Aconteceu no último domingo.

Havia quase um ano que queria assistir a “Boa Noite e Boa Sorte”, filme dirigido por George Clooney, sobre a batalha entre o jornalista americano Edward Murrow e o senador Joseph McCarthy, o homem que promoveu a caça às bruxas a comunistas residentes nos EUA, na década de 1950.

Como não sou crítico de cinema, tudo o que posso dizer é que achei o filme excelente. Como sustento essa opinião? Nesse caso, é muito fácil. Basta ter contato com um dos discursos proferidos por Murrow durante a película, enquanto apresentava o programa “See it now”, na rede CBS.

“Ninguém familiarizado com a história desse país pode negar que as comissões parlamentares sejam úteis. É necessário investigar antes de legislar. Mas a linha entre a investigação e a condenação é muito tênue, e o Senador Júnior de Wisconsin a ultrapassou por diversas vezes. Seu primeiro feito foi confundir o público com relação às ameaças internas e externas do comunismo. Não podemos confundir discordância com deslealdade. Precisamos sempre lembrar que, acusação não é prova, e que condenação depende de evidências e de um processo legal. Nós não sentiremos medo, e não seremos guiados rumo a uma era de irracionalidade. Se pensarmos a fundo em nosso passado, veremos que não descendemos de homens temerosos. Não descendemos de homens que temiam escrever, falar e defender causas que, por um momento, pareciam impopulares. Para os homens que se opõe aos métodos do Senador McCarthy, esse não é o momento para silenciar. Nós podemos negar nossos antepassados, mas não podemos escapar à responsabilidade pelo resultado. Não há como um cidadão republicano escapar a essas responsabilidades. Nós nos proclamamos, e somos, os defensores da liberdade onde quer que ela ainda exista no mundo. Mas não podemos defender a liberdade ao redor do globo, se não a cultivarmos em casa. As ações do Senador Júnior de Wisconsin causaram alarme e desânimo entre nossos aliados internacionais e deram relativo conforto para os nossos inimigos. De quem é a culpa por isso? Não tão somente dele. Ele não criou essa situação de medo, ele apenas a explorou. E com sucesso. Cássio estava certo, a culpa, caro Brutus, não está em nossas estrelas, mas em nós mesmos. Boa noite e boa sorte”.

Mas o que eu realmente gostaria de ressaltar é que um dos pontos principais do filme reside na possibilidade de uma autoridade (seja ela quem for) suprimir determinados direitos civis justamente com o suposto intuito de defendê-los. Um exemplo óbvio e atual reside na conduta do Governo Bush em “disseminar” valores democráticos e liberais através da imposição, da virulência, da ignorância. Da mesma forma, McCarthy buscava consolidar os valores capitalistas, democráticos e liberais através da busca a pessoas, cujas famílias supostamente estiveram relacionadas ao comunismo.

A convergência maior entre os dois discursos reside no patriotismo evocado tanto por McCarthy quanto por Bush. Em linhas gerais, seria algo assim: o futuro do país depende de tais ações, e quem não concorda com os ideais propostos é inimigo da nação.

Pode parecer patético (e o é), mas trata-se de algo tão presente no cenário atual quanto o aquecimento global. A base de tal convicção é tão míope quanto limitada. Simples: por mais que esses ultraconservadores (bem como os ultraliberais) gostem de enxergar tudo e todos com um maniqueísmo asqueroso, a oposição feita por Murrow na década de 50 e a oposição feita a Bush nos tempos atuais não apresentam conflitos no conteúdo, mas na forma. Ou seja, o jornalista, claro, não era contra os valores capitalistas, democráticos e liberais defendidos pelo senador, mas ia de encontro à forma de atuar deste último. Nessa mesma esteira, quem critica os atos de George W. Bush, não é necessariamente contra os valores fundamentais americanos, mas, entre muitas outras coisas, contra o genocídio no Iraque, por exemplo.

Aqui, fica absolutamente impossível não citar o inglês Samuel Johnson, escritor ímpar que viveu no século XVIII: “Patriotism is the last refuge of the scoundrel”. Algo como: “Patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

O que você acha?

3 Comments:

Blogger Luís Pereira said...

Eu concordo. A tantas vezes proclamada "bela democracia norte americana" causa um efeito retardado e amnésico em seus cidadãos. Os tornam patriotas por terem orgulho de viver em um país democrático, mas os fazem esquecer o quanto isso custa para o "resto" do mundo. A "bela democracia" Tio Sam nunca foi democrática com o meu país.

14:03  
Blogger Daniel Boa Nova said...

Boa Noite, Boa Sorte é mesmo um puta filme!

Altamente recomendado.

14:04  
Anonymous Anônimo said...

O mais curioso é que o país prega a ignorância aos nativos. Não sei se fico com pena ou com raiva.

Obs: Muito bom o texto.

15:17  

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