Ponto Jor

terça-feira, janeiro 30, 2007

O céu de Céu Marques

Luís Pereira

“Céu, o seu teste deu positivo!” Essa foi a resposta que Céu Marques recebeu após ter passado dois meses com broncopneumonia, doença que a fez chegar aos desumanos 27 quilos e despertou a necessidade dos exames de HIV.

O vírus da imunodeficiência humana (HIV - Human Immunodeficiency Virus) destrói os linfócitos – células que defendem o nosso organismo – tornando o corpo vulnerável a outras infecções e doenças oportunistas, que recebem essa designação por surgirem nos momentos em que o sistema imunológico está debilitado. Em outras palavras, esse vírus deixa a imunidade do corpo deficiente, fazendo com que doenças como a pneumonia e o sarcoma de kaposi se aproveitem da debilidade das defesas do organismo para causar danos que, em um indivíduo em estado normal, não conseguiriam.

Jornalista, labuta na Rádio Nacional de Angola, mãe de quatro filhas, detentora da guarda de dois órfãos de guerra e soropositiva. “Caiu-me o céu”, pensou Marques quando a médica lhe passava o triste diagnóstico. E o seu céu apenas começava a desabar.

Nimbostratos e cumulonimbos se formaram com uma intensidade elevada à enésima potência quando Céu levou suas filhas para fazerem o teste. A caçula, com nove anos de idade, estava infectada. “O mais doloroso para uma mãe é saber que tem uma filha soropositiva. Só Deus sabe o que está dentro de mim. Um sentimento de culpa por saber que foi transmitido no meu ventre, mas convicta que não foi intencional, porque não sabia da minha condição, nem a do meu companheiro”.

A AIDS não é congênita. É uma infecção, geralmente, causada por secreções genitais ou sangue. Há algum tempo, receber o diagnóstico dessa doença, conhecida como AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrom) ou SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), significava a indefectível assinatura do atestado de óbito.

Mesmo imaginando a força do choque, Céu chamou o seu ex-marido para conversar e propor que ele fizesse o teste. Mas o contragolpe veio através de uma esquiva egoísta, sórdida e desprezível. “Agora que você já sabe é só fazer o tratamento”, disse ele. O pai de sua filha caçula (as outras eram frutos de um relacionamento anterior) nunca tinha contado nada e já fazia tratamento contra a AIDS há alguns anos.

De uma união que durou 11 anos, a separação súbita, e até então incompreensível para Céu, aconteceu após a morte de um outro filho com diagnóstico indeterminado, fazendo-a pensar: “Seria SIDA?”.

Desesperada, Céu recorreu a amigos e recebeu apoio e coragem para erguer a cabeça e buscar - talvez no além - forças e fôlego para a - quase impossível – batalha ininterrupta de assoprar e afastar a tempestade que paira sob sua abóbada celeste.

Céu indaga: “Diga-me com sinceridade, o que merece um pai que contamina o seu filho e quase o deixa morrer? Esta pergunta tem me martelado muito a cabeça, sem, contudo, encontrar resposta”.

Céu Marques dá uma prova de que o céu é mesmo o “espaço ilimitado onde se movem os astros” e a “região, segundo a crença religiosa, habitada por Deus, os anjos e as almas dos justos”, pois ela não se acha no direito de odiar e condenar o seu ex-companheiro. “Quem sou eu para condená-lo? Mas é uma dor muito grande que carrego sempre que imagino o quanto ele foi cruel até com a própria filha”.

E afirma:

“O que me levou a assumir publicamente a minha condição é que, ao darmos a cara, ajudamos a todos que se encontram na nossa situação”.

“Sempre acreditei na SIDA, porque é uma doença que existe, e tive dois irmãos que morreram com ela, além de outras pessoas queridas”.

“O mais importante para mim é poder continuar a contar com as pessoas que me estenderam a mão na primeira hora, fazer tudo que estiver ao meu alcance para que nunca faltem medicamentos e alimentação, principalmente para a minha filha soropositiva, e que Deus continue a me dar força e coragem”.

Atualmente, graças aos avanços tecnológicos e às pesquisas, baixou o nível de periculosidade da SIDA, deixando de ser uma doença que sentencia a morte para ser considerada uma enfermidade crônica. Ou seja, uma pessoa soropositava – infectada pela doença – pode viver por um bom tempo sem apresentar nenhum sintoma.

A consciência e o coração justo de Céu Marques estão ajudando a clarear o seu nebuloso ambiente celeste e encontrar um caminho mais sereno para ela, seus filhos e as pessoas que a cercam. Mas não nos enganemos, o rumo ainda é difícil e provido de névoas. Porém, com a eminente certeza de que o céu pode esperar.

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Li o texto (ótimo) e no final fica um buraco na alma. foda cumpade... Cade a cura definitiva? revelem já!!! ou algo que permita a pessoa viver e não ter que SOBREviver

13:29  
Anonymous Anônimo said...

so voltei aqui pra dizer que fui eu, JONYS, que escrevi o comentário. esqueci de inserir o nome....

13:31  
Blogger Marília Miyazawa said...

De uma maneira poética você descreveu a mais profunda tristeza...

02:42  
Anonymous Anônimo said...

Muito bom. Faço das palavras da Marília as minhas.

ps:ê jony

15:18  

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