Conto para um "vagabundo"
Daniel Consani
Quando olhou para o velho e disse que não era supersticioso, Gilberto já havia se convencido por completo de que era aconselhável esquecer que no reveillon do ano anterior tinha usado exatamente as mesmas peças de roupa. O remorso jamais lhe tocou, embora condenasse a hipocrisia em seus atrofiados discursos humanistas sobre ideais e princípios. Era um hipócrita e um demagogo. Mas era honesto na tentativa frustrada de ser honesto, o que já é uma grande coisa. Vestindo uma bermuda jeans e uma camiseta amarela, ele não perdeu a chance de mordiscar a imagem retesada do velho. Aguardou este, que vestia branco de cima a baixo, comentar suas vestes supostamente inapropriadas para o momento e subiu ao púlpito da racionalidade estúpida negando a superstição impressa em cada linha de sua camiseta Hering, em cada face rota de sua bermuda já esbranquiçada.
Mais tarde, na praia, ao pular a sétima das sete ondas, Gilberto morreu. Caiu para frente e afogou, em meio a rolhas de champanhe e rosas vermelhas. Infarto fulminante foi a primeira hipótese levantada, até que o médico legista decretou: Gilberto foi o primeiro homem a morrer de hipocrisia crônica. Desde então, vive-se tempos moribundos. Por sorte.
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